sábado, 23 de outubro de 2010

Das Nuvens


Capitulo 1: A solidão e a cidade

Naquela manhã, foi o primeiro a chegar ao escritório. Não era o funcionário favorito do chefe a toa; gostava de fazer tudo do jeito mais ‘caxias’ possível. A mesa sempre bem arrumada, documentos e pendências sempre bem organizados e lembretes no bloco destinado aos mesmos. Tudo sempre atualizado e, por vezes, com cópia pro caso de possíveis perdas. De fato, um chato com ele mesmo e um incômodo para os colegas de escritório. Até porque, seria quase impossível para qualquer um deles alcançar algum destaque ou merecer algum elogio enquanto o ‘mala’ por ali estivesse.

Por se tratar de um sábado, não havia muito que fazer no escritório. Embora não visse problemas em trabalhar seis dias na semana, dependia dos outros colegas de firma. Era necessário, em alguns casos, que os outros estivessem tão adiantados quanto ele no serviço para que ele pudesse cumprir sua rotina de bons serviços prestados. Como uma boa parte dos funcionários largava tudo ao léu na sexta após o almoço e sequer voltavam para o trabalho, os sábados eram praticamente ‘ponto facultativo’. Só ia quem quisesse. Ele, o chato, estava sempre lá. Ao menos naquela manhã, foi bom ser dessa forma. Sobre sua mesa, um lembrete quase passou despercebido. Em meio a sua organização rotineira, não notou um bilhete deixado num canto da mesa. Obviamente colocado fora do espaço habitual para lembretes, o mesmo não seria notado não fosse sua vistoria diária por toda extensão de sua mesa em busca de recados deixados ali por algum desleixado.

Desdobrou o bilhete com a calma habitual e, como sempre, se detendo de tempos em tempos para desfazer cada dobra. Afinal, se havia um bloco destinado a recados (com todas as folhas de mesmo tamanho e presas ao todo da mesma forma), porque alguém cometeria a maldade de usar um pedaço de papel diferente? Após esticar e desdobrar por completo o tal papel e restabelecer a ordem em sua mesa de trabalho, passou a leitura do recado. Este dizia:

Bom dia idiota!
Como sabíamos que você seria o único imbecil capaz de aparecer no escritório em um dia de sábado, lhe deixamos esse recado. Estamos todos em um churrasco na casa do Hermes, o contador. Tem uma grana dentro da última gaveta da mesa do chefe, pega ela e compra umas cervejas e pó. Depois vem pra cá. Chegando aqui vai ter que comer uma puta, ou alguma vadia do escritório mesmo, na nossa frente!!! A Márcia e a Vânia já disseram que fazem o sacrifício. Vai ser sua forma de provar que é um homem, e não um saco de merda que só pensa em trabalho. Você tem até as 13h pra aparecer aqui com tudo que pedimos. Caso contrário vamos na sua casa te dar umas porradas pra você aprender a ser homem!

Atenciosamente,
Seus bem feitores

É claro que não tocou no dinheiro que estava na gaveta do chefe. Chegou a conferir se o numerário estava realmente lá, mas não teve coragem de colocar as mãos. Não sem uma autorização assinada pelo chefe. De novo se sentia incomodado com suas próprias circunstâncias. Sempre elas a amarrá-lo a alguma coisa que o impedia de viver e conquistar as coisas que sonhava. Amigos, mulheres, sonhos, sorrisos, vidas deixadas para trás sem remorso. Nada disso fazia parte de sua débil existência até aqui. Apegava-se as poucas coisas que conseguia conquistar e não olhava ao redor com medo de perder o que já tinha. De fato, tudo o incomodava: suas roupas, suas músicas, seu cheiro, suas anotações, os óculos, as canetas organizadas no bolso do paletó, o bloco de anotações...





Capítulo 2: Deuses da chuva, demônios da garoa

Decidiu, mesmo não tendo pego o dinheiro na gaveta do chefe, ir ao encontro de seus ‘colegas’. Fosse como fosse, eram suas únicas companhias. Eram as únicas pessoas com quem convivia, ou se relacionava. Mesmo que isso não soasse agradável; ao menos para eles. Talvez ele não precisasse cumprir todas as tarefas impostas pelo bilhete deixado em sua mesa. Podia ser só uma brincadeira. No final das contas podia ser só uma questão de aparecer na confraternização e ser agradável, falar de amenidades e mostrar que era capaz de se socializar de vez em quando. Caminhando pelo Centro da cidade pensou no que havia vivido até ali. O que durou poucos minutos, já que tirando o diploma em administração e os prêmios de funcionário do mês ganhos seguidas vezes, não tinha nada de muito relevante pra recordar. A chuva fina que caía na cidade vazia não chegava a incomodar. As doses cavalares de vitamina C tomadas diariamente (para não adoecer e, consequentemente, não correr o risco de perder um dia produtivo de trabalho) deviam ser suficientes para protejê-lo de um resfriado, virose ou coisa do tipo. O cenário era, em alguns aspectos, assustador. A imponência dos arranha-céus era aniquilada pelo cinza das nuvens. O silêncio nunca lhe soou tão profundo, opressivo e assustador. Era o mesmo silêncio que o acompanhava todas as noites antes de adormecer, porém nunca o olhou nos olhos como naquela manhã de sábado. Trouxe à mente dúvidas. Que não existiam antes; quando as certezas lhe davam a confiança comum aos fortes e vitoriosos. Diferente do que acreditava, era ele o perdedor. Sua disciplina e retidão não lhe conferiam mérito ou valor algum. Agora sabia. O cinza do dia tentava lhe dizer isso havia tempos.

O bilhete dizia: “compra umas cervejas e pó”. Comprar umas poucas latas de cerveja não lhe parecia algo errado. Mas pó!?! Como conseguir? Onde conseguir? Tratava-se de uma substância proibida. E não se sentia preparado psicologicamente para infringir leis. Decidiu ir a casa do Hermes somente com as cervejas. Ok, era melhor ir preparado: Pensar bem nas coisas que iria dizer, estar preparado para possíveis brincadeiras e piadas... Tudo daria certo! Na segunda-feira seria apenas mais um naquele escritório. Deixaria de ser o desagradável, o calado, o patético, enfim. Seria só mais um matando o tempo dia após dia a espera do ordenado. Com tantas coisas na cabeça, nem percebeu que o ônibus que havia tomado no Centro já estava quase chegando ao bairro onde ficava a casa do Hermes, na zona norte da cidade. Ao menos era o endereço que haviam deixado anotado no quadro de recados. Ao descer, pensou se valeria a pena aquela tentativa desesperada de ser aceito por aquelas pessoas. Afinal de contas, era explícito o desprezo que os colegas tinham para com ele. O que só era reforçado pelo tom do bilhete que haviam deixado pra ele. Não era um convite, era uma intimação, uma ordem!

Por alguns instantes torceu para que o endereço fosse falso, enquanto esperava que alguém viesse abrir a porta. Márcia e Vânia vieram abrir. Não conseguiu não reparar nos seios quase a mostra que as duas tentavam esconder dentro de minúsculos biquínis, e nas coxas grossas que ambas exibiam com seus shorts que permitiam enxergar praticamente seus úteros a metros de distância. As duas estavam visivelmente bêbadas e o receberam, aparentemente, bem:

- Oi! Finalmente chegou nosso convidado especial....Hahahahaha!!!
- Querido, se prepara que hoje eu e a Vâninha vamos te dar o melhor presente que você já ganhou na vida!!!
- Olha pra boca dessa sem vergonha! Tá até babando, doida pra dar a boceta pra você! Hahahahaha... Tá louquinha pra chifrar o maridão contigo, hein?
- Entra! Entra!
- Os meninos estão te esperando na churrasqueira. Lá atrás. Vai indo que nós vamos nos preparar pra cuidar de você....






Capitulo 3: A violência travestida faz seu trottoir

Nos fundos da casa, o cheiro de cerveja dominava o ambiente. Se aproximou timidamente com a sacola com poucas latas de cerveja e, com um aceno de mão tímido, saudou os convidados que ali conversavam animadamente. Não que já não esperasse por algo do tipo, mas se assustou quando todo o lugar parou para analisar dos pés a cabeça o convidado retardatário que chegava a reunião. Cada sorriso cortava-lhe a alma, atravessava seus olhos e deixava um rastro de vergonha e medo por onde passavam. Era, sem sombra de dúvidas, a pior sensação que já havia experimentado em toda sua vida. Os caras do escritório o cercaram e permaneceram em silêncio por alguns segundos que pareceram horas pra ele. Foi o Hermes, o dono da casa que quebrou o silêncio recém instaurado por sua chegada:

- Qual é seu bosta? Vai ficar parado aí? Deixa eu ver que cerveja é essa que você trouxe. Pegou a grana na gaveta do chefe? E o pó da rapaziada? Essas meninas do escritório só dão a base de pó, hein?

Sem saber o que dizer, esboçou um sorriso sem graça. No fundo, queria acreditar que as brincadeiras não passariam daquele ponto; até porque se tratavam de adultos e não é possível que fossem mais fundo do que já haviam ido com ele. O Hermes pegou as cerveja e levou-as para o freezer, próximo a churrasqueira. Pouco tempo depois, sentado sozinho em uma das mesas e sendo alvo de olhares de desprezo e risadas contidas, voltou a ser o centro das atenções. Vânia saia de dentro da casa, de cabelos molhados e fumando um cigarro. O biquíni parecia ter diminuído. De seus olhos saíam faíscas de pura maldade (ou assim lhe pareciam) que penetravam nele sem dó. Foi então que a morena de seis fartos sentenciou:

- É o seguinte galera: A Vâninha ta nuazinha no banheiro, toda cheirosinha esperando o amigo de vocês pra tirar o cabaço dele... Depois vai ser minha vez! Cadê o pó?!?

Hermes interveio:

- Acabou a brincadeira! Vai e mete a pica na safada! A gente promete que o marido dela não vai ficar sabendo. Todo mundo aqui já comeu as duas e os cornos nem desconfiam. Vai lá, seu mané!

Como não esboçara nenhuma reação, e já sabia que seria assim se uma coisa desse tipo acontecesse, três dos bêbados que estavam mais perto de sua mesa o agarraram e imobilizaram. Não viu muita coisa, mas em poucos instantes estava praticamente despido e jogado no chão frio do banheiro. A sua frente, Vânia o olhava com um sorriso quase de pena nos lábios grossos de onde escorriam pingos de cerveja. A mulher limpou o queixo e foi até ele. Com uma das mãos segurava a lata; a outra foi direto para o meio de suas pernas. Apertou seu pênis com firmeza e anunciou que aquela era a hora!

- Como é que é seu merda!?! Isso não fica duro não? Apostei com a minha colega que você só era um bosta no escritório! Vai dar conta de mim ou não? Até o chefe, velho e broxa brinca com a Vâninha aqui de vez em quando. Qual vai ser?!?

Foi até o basculante e avisou aos demais que esperavam ansiosos o desenrolar daquilo tudo, do lado de fora:

- Aí galera! Vou precisar de macho hoje, hein? Esse aqui é bicha e broxa! Hahahahaha!






Capítulo 4: O começo é o fim e o fim é o começo

Podia ser o olhar de pena daquela mulher nua a sua frente naquele banheiro; ou mesmo os gritos que vinham do lado de fora. O fato é que em uma fração de segundos não via mais nada. Quando caiu em si já havia espatifado a porta do box de vidro com a cabeça da colega de escritório. Daí até se desesperar com o sangue tomando conta de todo o cômodo foi um pulo. Arrombou a porta que havia sido trancada e correu sem saber direito pra onde. Só ouvia os gritos de ‘broxa’, ‘bicha’, ‘frouxo’, ‘otário’ e ‘cabaço de merda’ que iam ficando cada vez mais altos na sua cabeça independente do quanto se afastava da casa do contador. No fundo sabia que nunca deveria ter ido lá. Olhou pra trás e viu a casa já bem distante. Do portão saiu o Souza, um office boy que entrara na firma a bem pouco tempo, aos berros:

- Você matou ela seu bosta! Seu merda, era brincadeira! Tu vai ser preso seu otário! O Hermes foi pegar a peça e disse que vai te caçar seu imbecil!

Só consegui pensar em correr até a rua principal e tentar um taxi. Nenhum se atreveu a parar para um sujeito tremendo, com as calças sujas de sangue e cortes nos braços. Caminhou rezando para que não passasse nenhuma viatura da polícia e o parasse pra perguntar o que havia acontecido. Chegou a pensar em voltar e ver o que podia fazer para ajudar a mulher que deixara caída no banheiro. Mas a idéia do Hermes, o dono da casa armado e furioso o assustava demais. Sem fazer muita idéia de como havia conseguido chegar a seu apartamento no Centro da cidade, acordou no dia seguinte ainda com as mesmas calças sujas de sangue. Passou o domingo todo em casa, trancado no quarto em silêncio e esperando que alguém batesse à porta para prendê-lo. Nada aconteceu.

Na segunda-feira, ainda tremendo de medo, não conseguiu resistir à rotina de se levantar, trocar de roupa e ir para o escritório. Acontecesse o que acontecesse, quebrar a rotina e perder um dia de trabalho lhe soava mais assustador que a certeza de encontrar a polícia a sua espera na porta de casa. Ao chegar ao escritório encontrou todos reunidos perto da janela falando muito baixo, quase sussurrando. Após um esforço sobre-humano, olhou por cima dos óculos e perguntou quase que pra si próprio, mas tendo como alvo os colegas a sua frente, como estava a colega. A resposta veio em seguida, da boca de Márcia, que falou calma e pausadamente:

- Fica tranqüilo seu bosta, ela não morreu. Mas ta em casa com a cabeça enfaixada, seu imbecil. Por causa de uma brincadeira você ferrou com a vida de uma mãe seu idiota!

Um ‘sinto muito’ saiu de sua boca, mas sequer foi ouvido, já que Hermes acabava de entrar na sala fitando-o severamente.

- Seu filho da puta, você tem noção da merda que você fez? O marido dela descobriu o que rolava nos churrascos do escritório. No hospital, encontraram vestígios de cocaína no sangue da menina. O corno ta pedindo o divórcio e já avisou que vai levar os filhos pra casa dos avós no Sul. Você é um merda, devia estar internado. Mas o chefe já cuidou disso. Conversamos todos com ele ontem. Ele tem amigos na polícia. Fica tranqüilo, não vai mais precisar forçar um ‘bom dia’ pra fingir que se importa com ninguém aqui. Vamos finalmente nos livrar de você.

-O chefe ta te chamando na sala dele... - disse Souza saindo de cabeça baixa da sala do chefe.

Qualquer coisa que ele dissesse não faria a menor diferença naquele momento. Não pediu pra ser convidado pra festa nenhuma; só queria passar o sábado trabalhando com fazia todas as semanas. Não planejou nada daquilo. Foram eles, e a própria Vânia que inventaram tudo aquilo. De qualquer forma, era melhor ir logo ver o que o chefe queria com ele. Provavelmente seria demitido.

Ao entrar na sala e fechar a porta se deparou com um policial e dois homens de branco. Pareciam ser enfermeiros, mas não tinha certeza. O chefe pediu que ele se sentasse e ouvisse sem interromper:

- O pessoal me contou de seu ataque no churrasco deles ontem. Olha aqui, você sabe que não devia nem ter ido lá. Ninguém te convidou. O Hermes não faz idéia de como você descobriu o endereço dele. Você aparece sem ser convidado, invade o banheiro e quase mata uma moça, mãe de três filhos, por nada!?! Eu sabia que você não era bom da cabeça, mas daí a chegar a esse ponto??? Era só vir ao trabalho, voltar pra casa e tocar sua punhetinha sem incomodar ninguém. Era só não tentar ser como os outros. Era só fingir que você não existia, como você deve ter feito sua vida toda... Meu rapaz, eu vou ser teu amigo. Contei uma história louca pro meu amigo aqui da polícia. Ele já disse que vai aceitar em consideração a mim. Pra todos os efeitos você entrou na empresa através de um programa maluco desses do governo que empregam doentes mentais, ok? Você não vai ficar preso nem nada, esses dois enfermeiros vão te levar pra uma clínica particular, coisa fina. Vou usar seu FGTS pra pagar essa porra. Você fica lá por uns tempos e quando sair vai estar automaticamente desligado de nosso quadro de funcionários. É só assinar aqui. E pra coisa ficar no esquema, é legal o pessoal do prédio te ver saindo na camisa de força. Só pra parecer de verdade. Você não se importa, né? Assina aí e usa esse tempo pra pensar nessa sua vida de merda. Vai por mim, é melhor assim. Pode levar, Fontes!

No final do discurso do chefe, já estava convencido de que tinha mesmo alguma culpa naquilo tudo. Não pelos motivos que o coroa a sua frente expunha, mas por motivos que só ele conhecia. Melhor não reagir, só pra variar. Vai ver era pra ser desse jeito mesmo. Talvez, se tivesse ficado em casa isso nem tivesse acontecido. Provavelmente iriam esquecer dele em bem pouco tempo. Em todo caso, era melhor assim. Perdia, se entregava, desistia, aceitava... só pra variar... Nunca mais foi visto.

Rafael A.

Sem pretensões


Este sou eu, ainda o mesmo. Igual, chato, redundante, boçal. Tudo sempre igual: vícios de linguagem, deuses da chuva, dias de sol. Ainda penso nas mesmas coisas e ouço as mesmas músicas. Guio-me perdido pelas mesmas ruas e caminho sempre em direção aos mesmos lugares. Pra ver e viver os mesmos rostos, ouvir as mesmas vozes, duvidar das mesmas verdades e desprezar os mesmos sorrisos. Pra incomodar do mesmo jeito e sair de cena com a mesma discrição. Descrevendo pra mim mesmo os mesmos atos com seus mesmos finais, iguais. Enfim, este sou mesmo eu. Sem pretensões. De fato, sou eu...

Este sou eu: Ainda preso aos mesmos lugares, sentenças, medos e modos. De novo igual, estagnado, monótono, tão patético quanto meus iguais. Tudo que não quis ser. Este sou eu, hipócrita comigo mesmo e com minhas virtudes. Separando coisas. Calculando o incalculável. Afeiçoado a meus defeitos e dependente de minhas falhas... Eu, de novo. Como sempre: me plagiando, copiando, reaproveitando os restos, me martirizando e gozando de fracassos. Este sou eu, na mesma esquina. No fim do caminho e com a mesma canção. Sou eu mesmo? Ainda? De novo? Ok, ‘se não fosse desse jeito sabe lá...’, né?

Rafael A.